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A desbeatificação do Ambiente

5 - Janeiro - 2023

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Que fazer às pontas de cigarro? A investigação tem revelado uma surpreendente multiplicidade de aplicações. Falta recolher.

Entrou em vigor neste início de 2023 a disposição legal espanhola que impõe o pagamento de taxas pelas empresas tabaqueiras destinadas a financiar a recolha de pontas de cigarros [1].
Tributar os produtos na origem (lançamento no mercado) é uma das medidas preferidas dos políticos e pelos governos, porque geram popularidade e receitas. Há quem acredite que a tributação, por si só, tem um impacte ambiental positivo, ao dissuadir ou reduzir o lançamento no mercado do produto visado. A realidade tem mostrado, em múltiplos exemplos, que a tese é uma ilusão. A redução da produção e do lançamento de um produto no mercado não significa necessariamente uma redução do impacto ambiental negativo. Por vezes pode suceder o contrário [2]. Por outro lado, a redução da produção (e do impacto ambiental) pode ser mínima e ou temporária, se o produto em causa tiver uma procura pouco elástica, como é o caso dos cigarros.
Em terceiro lugar, a tributação só tem sentido ambiental se a receita obtida tiver aplicação ambiental direta, isto é, se o dinheiro pago na "origem" for aplicado na solução ambiental: a recolha e a recuperação dos materiais descartados. É o que sucede com a disposição da lei espanhola relativa aos produtos de tabaco.
O fumador que acaba de fumar o seu cigarro raramente rem consciência do impacto do descarte. A ponta do cigarro, a chamada beata, é pequena e existe a ilusão de que é biodegradável e inofensiva. Mas não é. O mundo conta com cerca de 10 mil milhões de fumadores, que produzem, em cada ano, cerca de 6,25 biliões de beatas descartadas. Embora se registe uma tendência global para a diminuição do número de fumadores e da quantidade consumida por cada um, a diminuição é assimétrica (mais na Europa, menos na Ásia) e globalmente anulada pelo aumento da população.
Que fazer com as beatas? A pergunta deve ser feita, desde logo, ao fumador. O impacte ambiental das pontas de cigarro advém do facto de serem descartadas de forma inadequada e incivil, como sucede com a maior parte dos fumadores, que simplesmente deitam as beatas para o chão. Se este gesto  fosse simplesmente substituído por um um descarte correto, as despesas com a limpeza pública seriam reduzidas em muitos milhões. O varrimento das ruas é uma despesa pública inversamente proporcional ao nível de educação e civismo dos cidadãos e o varrimento das beatas é uma das operações mais demoradas e custosas (o grau de dificuldade/tempo é inversamente proporcional ao volume). Mas impacto negativo não se circunscreve apenas às despesas de limpeza pública. Os filtros dos cigarros são feitos de acetato de celulose, um polímero fotodegradável mas dificilmente biodegradável e altamente contaminado com alcatrão, nicotina, cianeto de hidrogénio, benzopireno, metais pesados e compostos aromáticos policíclicos. Abandonadas no ambiente (via pública), as pontas de cigarro têm uma desintegração e degradação lenta (cerca de 18 meses). Os contaminantes presentes nos filtros são tóxicos e letais para organismos vivos. O abandono puro e simples comporta riscos para o ecossistema e para a saúde pública [3].
O fluxo "normal" das pontas de cigarro é o dos resíduos urbanos indiferenciados, o que significa que acabam por ser incineradas. A mera incineração é uma operação de eliminação de resíduos, típica da economia linear. Se a cidade em questão estiver equipada com centrais de produção de eletricidade a partir da incineração de resíduos, as pontas de cigarro alimentam o fluxo da valorização energética. Esta é a solução final mais avançada disponível na atualidade. A investigação está à procura de outras soluções, mais avançadas, que buscam a recuperação (reciclagem), dos materiais presentes na ponta de cigarro, servindo a lógica da economia circular.
A ponta de cigarro é composta por três materiais: o filtro, o papel (envoltório) e o tabaco residual. O filtro  é feito de acetato de celulose (obtida a partir da reação da celulose com anidrido acético e ácido acético na presença de ácido sulfúrico. A celulose, rica em carbono orgânico, está também presente no papel que envolve a ponta de cigarro. Um grupo de  investigadores da Universidade da Extremadura (Cáceres, Espanha) desenvolveu um processo de recuperação do acetato de celulose, baseado numa sequência de extrações e na precipitação química [4].
A possibilidade e viabilidade de obter pós de carbono a partir das pontas de cigarro ganhou interesse com a emergência do mercado das baterias de lítio, baseadas em anodos de carbono. Um grupo de investigadores da Unviersidade de Kunming (China), experimentou um método de reciclagem numa etapa de carbonização a 800 ºC durante duas horas em atmosfera inerte (azoto), tendo obtido anodos com desempenho eletroquímico satisfatório [5].

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Também na China, foi desenvolvido um processo de recuperação do acetato de celulose das pontas de cigarros para uso na produção de colas termofusíveis [6].

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Na linha da ideia de economia circular, têm sido feitas diversas experiências laboratoriais [7]. A investigação tem revelado uma impressionante diversidade de aplicações possíveis para o acetato de celulose dos filtros. Para além dos anodos de carbono e dos adesivos hot melt, a investigação explorou aplicações como alcatrão, materiais de insonorização, inibidores de corrosão, biofilmes, blocos para construção, armações para óculos, etc.. É certo que se trata ainda de experiências laboratoriais, mas tudo indica que existem mercados que possam servir de destino final e proporcionar o objetivo da economia circular: em vez de serem devolvidos ao ambiente (eliminação), os materiais descartados devem ser devolvidos ao mercado. Para que pelo menos algumas destas ideias se transformem em negócios, é necessário que as pontas de cigarro sejam descartadas e recolhidas seletivamente. butt recyclingDificilmente se encontrará modo de viabilizar, técnica e economicamente, a operação de extrair os milhões de pontas de cigarros do fluxo de resíduos. Enquanto houver fumadores, a solução do problema das pontas de cigarro continuará dependente da educação e civismo dos fumadores (deposição seletiva), da existência de circuitos de recolha seletiva e de destinos finais de valorização. Sem estes pilares, a simples tributação será pouco mais que um expediente para obter uma receita adicional. O valor imposto às tabaqueiras – na prática, repercutido no preço dos cigarros – fará sentido apenas e quando reverter por inteiro para os circuitos de recolha seletiva.

Notas e Referências:
[1] Ver artigos 60.º, n.º 3, e   da Ley de Residuos y Suelos Contaminados, BOE de 8/4/2022, texto consolidado em https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2022-5809.

[2] Por exemplo, ao impor uma taxa sobre o saco de plástico leve, o legislador português fez desaparecer os sacos de compras do mercado. Em seu lugar, os consumidores passaram a usar sacos sobredimensionados em espessura (não tributados) e sacos reutilizáveis (com elevadas cargas de tinta, e dificilmente recicláveis). A quantidade global de plástico lançada no mercado aumentou em vez de diminuir. A receita fiscal esperada (que não se destinava a aplicações ambientais) não se concretizou.

[3] Para uma síntese do impacto ambiental das pontas de cigarro, ver, p. ex.: Aeslina Abdul Kadir et allia, Cigarette Butts Pollution and Environmental Impact – A Review; Applied Mechanics and Materials, Vol. 773-774, julho de 2015; https://www.scientific.net/AMM.773-774.1106.pdf;
Joyce Lee, Get Your Butt Off the Ground!: Consequences of Cigarette Waste and Litter-Reducing Methods (Tese);  Pomona Senior Theses,Paper 44, Claremont, 2012; https://scholarship.claremont.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1043&context=pomona_theses;
Eli Slaughter et allia, Toxicity of cigarette butts, and their chemical components, to marine and freshwater fish; Tobacco Control 201, N.º20(Suplemento 1), pp. 25-29; https://tobaccocontrol.bmj.com/content/tobaccocontrol/20/Suppl_1/i25.full.pdf;
Marianne Quemeneur et allia, Impact of cigarette butts on microbial diversity and dissolved trace metals in coastal marine sediment; Estuarine, Coastal and Shelf Science, 2020; https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02881380/document;
R. MacKenzie et allia, The environmental impact of tobacco use; Tobacco in -Australia – Facts and Issues; https://www.tobaccoinaustralia.org.au/chapter-10-tobacco-industry/10-16-the-environmental-impact-of-tobacco-use.

[4] Maria Benavente et allia, Cellulose Acetate Recovery from Cigarette Butts; Comunicação apresentada na Conferência Internacional sonbre Ambiente, Tecnologia e Engenharia Verde de Cáceres, 18-20/6/2018, publicada em Proceedings, Vol 2, n.º 20, 2018; https://www.mdpi.com/2504-3900/2/20/1447/pdf?version=1551085192.

[5] Chengyi Yu et allia, The Recovery of the Waste Cigarette Butts for N-Doped Carbon Anode in Lithium Ion Battery; Frontiers in Materials, Vol. 5, outubro de 2018; https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fmats.2018.00063/pdf.

[6] Yong-Ho Kim et allia, Recovery of cellulose diacetate from cigarette butts and its use for formulation of hot melt adhesive; Materials Research Express, Vol. 8, n.º 7, julho de 2021; https://iopscience.iop.org/article/10.1088/2053-1591/ac113f/pdf.

[7] Para uma síntese panorâmica, ver, entre outros:
Samuelle Marinello et allia, A second life for cigarette butts? A review of recycling solutions; Journal ou Hazardous Materials, Vol 384, fevereiro de 2020; https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0304389419311999;
M. Hazbehiean, et allia, Converting the cigarette butts into valuable products using the pyrolysis process; Global Journal of Environmental Science and Management, Vol. 8, N.º 1, pp. 133-150, 2022; https://www.gjesm.net/article_244343_167a5938c4910f133699db9276c984ec.pdf;
Anna de Ferzo et allia, A Clean Process for Obtaining High-Quality Cellulose Acetate from Cigarette Butts; Materials, Vol 13, N.º 20, novembro de 2022; https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7659942/pdf/materials-13-04710.pdf.

Pandemia e Plásticos de uso único – o regresso ao ponto de partida

5 - Agosto - 2021

A Agência Europeia do Ambiente está a divulgar um estudo preliminar do impacto da pandemia no consumo de plásticos de uso único e no ambiente. O estudo Impact of COVID-19 on single-use plastics and the environment in Europe tenta analisar as primeiras evidências estatísticas e conclui deste modo: "as lições aprendidas com a pandemia podem dar lugar a repensar e otimizar o consumo de plástico e as práticas de gestão de resíduos, para tornar a sociedade menos vulnerável e melhor preparada para potenciais pandemias futuras, faltas de matérias-primas ou eventos eea1disruptivos". Dificilmente se pode discordar, talvez porque tudo isso já estava na ordem do dia. A pandemia apenas sublinhou o que já se sabia. Ou devia saber. Não é de estranhar que, enquanto a pandemia ainda dura, o tema dos plásticos descartáveis tenha regressado ao business as usual.

O confinamento (lockdown), ao impor a restrição, redução ou mesmo paragem de várias atividades económicas esteve na origem de considerações ambientais disparatadas. O hábito de converter a a atividade económica em emissões levou à conclusão simplista de que a pandemia COVID-19 foi benéfica para o ambiente. Se as contas estivessem certas, a conclusão seria deprimente: a depressão e a morte seriam verdadeiras soluções ambientais. Nem o delírio da deep ecology chegou a tanto…

O lockdown e as alterações rápidas

A pandemia apanhou a meio a campanha de redução/proibição dos plásticos de uso único, abreviadamente designados SUP (single use plastics). O confinamento provocou alterações rápidas. O consumo de máscaras, com destaque para as máscaras cirúrgicas descartáveis fabricadas em polipropileno, disparou e confrontou a Europa com o resultado da sua imprudência em manter apenas uma capacidade de produção residual. Nos últimos meses de 2019, quando na Europa ainda se pensava que o coronavírus não passaria de uma crise chinesa, os operadores chineses vieram ao mercado europeu comprar de volta lotes de máscaras que tinham vendido nos meses anteriores. A Europa estava dependente da China e quando de repente precisou de usar uma ou mais máscaras por cidadão e por dia, viu que tinha os stocks em baixo. No primeiro semestre de 2020, a Europa teve de lidar com a especulação desenfreada no "mercado" das máscaras. A procura foi induzida pela necessidade e pelas regras de uso obrigatório. A importação de máscaras, estimada em 298 000 toneladas em 2019, pode ter passado para cerca de 638 000 toneladas em 2020, com a agravante dos prazos de entrega desesperantes, da necessidade do transporte aéreo, etc. Os números ainda carecem de confirmação, até porque o apuramento não é fácil num mercado perturbado pela emergência. Tal como sucedeu com as máscaras, o consumo de luvas descartáveis – de silicone, nitrilo e PVC -  também explodiu, com preços induzidos pela pura especulação e, no caso do nitrilo, pelas limitações da capacidade de produção. As importações passaram de 261 000 toneladas em 2019 para cerca de 470 000 toneladas em 2020 (estimativa).
Todos estes artigos descartáveis criaram um novo tema para a gestão de resíduos. Foi dada a indicação óbvia de que deveriam ser descartados com o lixo doméstico comum, para evitar a contaminação dos fluxos destinados à reciclagem e garantir uma eliminação ou valorização mais eficaz através da incineração. Mas nem sempre os cidadãos cumpriram. As máscaras deixadas na via pública mostraram que o défice de educação ainda tem um nível crítico.

A parte mais significativa dos plásticos de uso único está nas aplicações de embalagem. No segmento das embalagens de origem (indústria), sobretudo de produtos alimentares, águas e refrigerantes, as alterações foram pouco significativas, dado que, mesmo durante o lockdown, as indústrias alimentares e as grandes superfícies continuaram em laboração. As reduções de produção/consumo praticamente só tiveram significado no setor da restauração.
No segmento das embalagens de serviço (comércio), sobretudo para produtos alimentares, registaram-se alterações significativas, mas de sinais contrários. O fecho da restauração e o confinamento reduziram o consumo local, nómada (on the go) e para levar (take away), mas, por outro lado, aumentaram as encomendas take away e as compras on line para entrega domiciliária.
As estatísticas ainda não permitem afirmar até que ponto se registou a compensação entre as reduções e os aumentos no período pior da pandemia (a partir de abril de 2020). O estudo Impact of COVID-19 on single-use plastics and the environment in Europe aponta para uma redução do consumo de embalagens plásticas no período abril-setembro de 2020. Esse efeito não foi, no entanto, específico do plástico de uso único, nem sequer do plástico. Seja como for, as estatísticas evidenciam que no quarto trimestre de 2020, o consumo global de embalagens de plástico tinha voltado ao nível normal (business as usual)! A pandemia não provocou uma alteração estrutural do consumo.

A gestão de resíduos

No que respeita à vertente ambiental, o aumento do consumo de máscaras descartáveis representou um acréscimo de efeitos negativos: mais resíduos e mais emissões ligadas ao transporte (aéreo, inclusive). Esses efeitos só agora começam a atenuar, mas o uso das máscaras ainda se vai manter acima do que era antes da pandemia. A discussão descartáveis versus reutilizáveis revelou-se deslocada, senão mesmo diletante, no contexto da pandemia. Por um lado os estudos comparativos chegaram à mesma conclusão de sempre: depende dos fatores e indicadores incluídos ou excluídos do modelo. Por outro, o contexto de pandemia, impôs uma condição adicional: a vantagem de uma ou outra só é válida se a máscara for usada corretamente do ponto de vista sanitário. Sem surpresa: a vantagem ou desvantagem ambiental também depende mais do uso e modo de descarte…

No que respeita ao impacto ambiental das embalagens, se a análise se limitar a converter as estimativas de consumo em emissões de CO2, o resultado é óbvio: redução durante o período abril-setembro de 2020, seguida de regresso ao nível pré-pandemia. As estatísticas de gestão de resíduos e as respostas aos inquéritos fornecem dados contraditórios: há cidades que reportam redução dos resíduos de embalagens de plástico, enquanto outras reportam o contrário. Provavelmente, baseiam-se em critérios de apuramento diferentes.

A europa regressa, portanto, ao ponto de partida da equação dos plásticos de uso único. A pandemia evidenciou alguns dados que pareciam esquecidos. Por exemplo, que a europa está mais dependente dos descartáveis do que pensava e que eles são especialmente necessários em situações de crise/emergência. Não se tendo alterado a dependência da importação, pode concluir-se que a europa não aprendeu a lição. A "lógica" do low cost asiático baseado no dumping social e ambiental fala mais alto. No que se refere às embalagens, a pandemia voltou a evidenciar a discrepância entre a moda anti-plástico dos decisores e a preferência dos consumidores pelo plástico. Uma e outra coexistem, o que significa que não se avançou muito na questão ambiental. É mais fácil proibir os SUP do que inovar e progredir na gestão de resíduos, na conceção das embalagens (redução na origem, design for recycling), nos modelos de economia circular e no comportamento responsável dos cidadãos.

Carlos da Silva Campos

Fonte de Informação: Impact of COVID-19 on single-use plastics and the environment in Europe

A embalagem que desaparece?

18 - Julho - 2021

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Há mais de uma década que se investiga e desenvolve a produção de materiais de embalagem a partir de algas. A Notpla (Londres, Reino Unido) produz películas para revestimento de caixas de cartão e para fabricar saquetas de condimentos alimentares. O produto chama-se Ooho! e é apresentado com estas palavras: “Comestível e biodegradável. A alternativa ao plástico. Ooho é uma embalagem flexível para bebidas e molhos. É feita a partir do Notpla, o nosso material que combina algas e plantas. O Ooho biodegrada em 4 a 6 semanas, ou então você pode comê-lo, o que o torna ideal para o consumo nómada“. A apresentação é feita no website da empresa, que começa com um filme.

A produção de películas de embalagem a partir de macroalgas é uma boa notícia, com potencial económico e interesse ambiental. O material tem origem renovável e é biodegradável. Mas sobre uma boa ideia, os promotores iniciaram uma campanha de lançamento enganosa, que procura convencer não pela informação, mas pela ignorância. Vejamos:

  • Tudo começa com o nome do material. NOTPLA, not PLA, é uma referência direta a um dos polímeros de embalagem conhecidos (PLA, polímero de ácido láctico, produzido a partir do milho). Seria mais próprio criar um nome orientado para aquilo que o material é, em vez de indicar o que não é…
  • Para se poder alegar que o material é “comestível”, é indispensável informar o que o produto é, ou seja, respeitar as normas básicas da rotulagem alimentar. Não basta a referência vaga a algas e plantas. O material tem aprovação EFSA ou FDA? Recorde-se que a elevada capacidade de bioabsorção e acumulação das algas faz com que seja indispensável despistar os riscos de exposição a metais pesados e outros elementos nocivos para a saúde (ver, p. ex.. SÁ MONTEIRO et alia, Analysis and Risk Assessment of Seaweed, 2019). Sobre este tema, a NOTPLA não disponibiliza informação.
  • A produção de alimentos baseados em algas está longe de ser uma novidade:  a produção mundial está acima dos 20 milhões de toneladas. A parte destinada a alimentação humana direta varia entre 20 e 45%. No japão o consumo de algas como alimentos vegetais oscila entre 1,5 e 2,5 kg/hab/ano. Existe legislação europeia sobre alimentos e sobre embalagem alimentar (ver, p. ex. Anu Lähteenmäki-Uutela et aliaEuropean Union legislation on macroalgae products, 2021).
    Quem apresenta um produto novo deve evidenciar a conformidade com essa legislação para poder fazer alegações de “comestível” ou “apto para contacto alimentar”. Compreende-se a reserva sobre processos de fabrico e transformação. Mas não se peça ao consumidor que aceite comer de olhos fechados.

Algae Farm Field In Indonesia

  • A imagem ambientalmente idílica da colheita costeira não corresponde à realidade: 95% da produção ocorre em cultivo (seaweed farming). Os produtos NOTPLA provêm exclusivamente de seaweed farms da Bretanha e do norte de Espanha.
  • O facto de a película baseada em macroalgas poder ser comestível não elimina a necessidade de embalagem. O website desta empresa começa com a frase: “fazemos a embalagem desaparecer“… Mas se a película é alimento, vai precisar de uma embalagem que a proteja da contaminação. A ideia (posta em filme) da distribuição manual de saquetas de água que se podem levar diretamente à boca é obviamente um disparate do ponto de vista da higiene e segurança alimentar. É como colocar uma amêndoa dentro de um pêssego e dizer que a embalagem deixou de ser necessária.
  • Para se poder alegar que o material é “biodegradável” não basta dizer que se degrada em 4 a 6 semanas. O conceito de biodegradação é controverso se não for detalhado. Em que condições degrada? As condições normais de tempo, humidade, temperatura? Numa mistura normal de resíduos urbanos/domésticos com saturação de orgânicos? Qual o mecanismo e o resultado da degradação? Um dos erros infantis da promoção dos produtos biodegradáveis consiste em esperar que o consumidor acredite que o material “desaparece” espontaneamente, sem que seja necessário assegurar condição alguma.
  • Nas FAQ (perguntas frequentes) e em letra mais pequena, a empresa diz: “os nossos produtos…são 100% vegan e compatíveis com a compostagem doméstica. E todos os os produtos NOTPLA têm certificação de segurança alimentar. As saquetas de molhos são tecnicamente comestíveis, mas não o recomendamos como uso principal“. Se se alega uma certificação, deve disponibilizar-se a evidência. O que se recomenda em letra grande e em filme promocional, não se deve “não recomendar” em letra pequena…
  • Dizer que a película de macroalgas é “a alternativa ao plástico” é uma hipérbole publicitária com escassa correspondência com a realidade, mesmo que seja restrita ao segmento das bebidas e dos molhos ou condimentos. Se percorrermos o website da empresa, constatamos que o único produto em fase de comercialização são as caixas de cartão revestido. As saquetas para condimentos ainda estão na fase “coming soon” e outras ideias com filmes seláveis a quente e saquetas para uso não alimentar ainda são “future products“…
  • Como qualquer outro material de embalagem, também a película de microalgas deve ser apresentada com a sua solução final. A empresa limita-se a dizer: “como a casca de um fruto, deite-a no lixo indiferenciado ou mesmo no sem compostor de resíduos de alimentos“. A recomendação está certa para as saquetas de condimentos, por várias razões. Desde logo, porque A presença de películas biodegradáveis nos circuitos de recolha seletiva é um problema para a reciclagem. Em segundo lugar, porque as embalagens de condimentos são de pequena dimensão (escapam facilmente ao enfardamento de resíduos) apresentam elevado grau de contaminação (o produto residual pesa mais que a embalagem).  Por conseguinte, o consumidor tem de ser informado para não misturar estas saquetas nos resíduos de plástico. Finalmente, a indicação dada pela NOTPLA não serve para um dos seus principais produtos (e até agora o único em comercialização regular): as caixas de cartão revestidas por película.

O cultivo e transformação de macroalgas é um setor económico ascendente, com projetos de grande interesse (v. p. ex., o projeto GENIALG, com participação de empresas e universidades portuguesas). O desenvolvimento de novos materiais de embalagem a partir de fontes renováveis e sustentáveis é uma perspetiva de investigação e de negócio interessante e séria que merece uma promoção adequada e baseada em factos e evidências, em vez de alegações vagas e hiperbólicas que apelam à ingenuidade. Neste caso, o produto é mais credível do que a apresentação que dele foi feita.

Carlos da Silva Campos

Fonte: Notpla

Lei anti-descartável – Lá vamos nós outra vez…

18 - Julho - 2021

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A McDonald’s está a testar novas embalagens de serviço “reutilizáveis” em 10 lojas francesas. Para o consumo no local, desaparecem os copos de papel revestido, que são substituídos por copos de vidro. Os cornetos de cartão para batatas fritas dão lugar a cornetos rígidos em material cerâmico, que mantêm a cor vermelha. As caixas do happy meal continuam a ser de plástico, mas “reutilizável”. As sanduíches de hamburger continuam a ser embrulhadas em papel. Para levar, existem caixas de cartão “refecháveis”.
A cadeia de restauração rápida está a testar as soluções de reutilização para fazer boa figura, num contexto em que o setor tem sido massacrado com toda a espécie de críticas por gerar grande quantidade de resíduos, por não triar devidamente, e, claro, por fazer mal ao Planeta.

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A reutilização das embalagens de vidro e cerâmica implica lavagem, mas ainda não se sabe se essa operação será feita em cada estabelecimento (o que exige obras, equipamentos e procedimentos novos) ou subcontratada. O mínimo que se exige é que sejam garantidas condições de higiene e segurança alimentar similares às das soluções “descartáveis”. Do ponto de vista ambiental, resta aferir o impacto do consumo de água e do transporte. Além disso, as embalagens “reutilizáveis” também têm um fim-de-vida. Será necessário que sejam utilizadas múltiplas vezes para que a redução da quantidade de resíduos seja relevante e compense o facto de estas novas embalagens multiplicarem o peso e o volume dos resíduos.
Quanto à reciclagem, as novas “soluções” deixam novas dúvidas. Não existem circuitos de recolha seletiva de embalagens de cerâmica. O vidro é altamente reciclável, mas os copos pertencem a uma categoria (cristalaria) diferente da categoria desejada (o vidro de embalagem) para os circuitos de reciclagem. É por isso que não devem ser colocados no vidrão.
Se estas “soluções” vingarem, o papel e o cartão serão as principais vítimas (o plástico tem sido gradualmente banido da restauração rápida, pela mesma greenwashing simplista). O efeito na quantidade de resíduos e nas taxas de reciclagem será irrelevante e os restantes impactos (consumo e tratamento de água, emissões associadas ao transporte) irão provavelmente aumentar.

A proibição está longe de ser a via única e eficaz para reduzir a quantidade e impacto ambiental dos resíduos. Uma estratégia coerente deveria incluir medidas de redução ao mínimo do peso, espessura e da diversidade de materiais (para facilitar a separação), e para aumentar a reciclagem. No caso dos plásticos, o setor da restauração rápida deveria utilizar apenas dois ou três polímeros, fáceis de separar na etapa da reciclagem. No caso dos papéis, poderiam evitar-se os revestidos (menos “interessantes” para a reciclagem) e exploradas as possibilidades de valorização de papéis com contaminação orgânica.

O ataque aos descartáveis na restauração rápida e na cadeia alimentar em geral é particularmente inoportuno em contexto de pandemia, tendo em conta o que se sabe sobre a persistência do coronavírus em superfícies de vários materiais. Por outro lado, esta introdução tardia das embalagens de serviço de vidro e cerâmica altera as regras de segurança contra acidentes, sobretudo com crianças e adolescentes. Por falar em crianças, a onda anti-plástico pode fazer desaparecer os brinquedos distribuídos com os menus. A fatwa fundamentalista contra os plásticos atinge os reutilizáveis.

As leis anti-descartável cederam à facilidade, à demagogia e até à preguiça de buscar o conhecimento. Na realidade, o debate descartável versus reutilizável tem pelo menos três ou quatro décadas. Mas quase tudo o que se estudou e concluiu passou despercebido aos políticos, legisladores e opinion makers de hoje, cujas carreiras se baseiam mais em ideias descartáveis do que em conhecimento reutilizável.

Carlos da Silva Campos

Fontes: McDonald’s França, Business Insider

Biodiversidade Tropical

17 - Julho - 2021

A biodiversidade aumenta com a aproximação ao equador. A temperatura e a humidade favorecem as mais diversas formas de vida. A zona tropical, que representa 40% da superfície da Terra, alberga 90% das aves, 85% dos insetos e mais de 75% dos mamíferos, anfíbios, peixes e plantas com flores. A diversidade é várias vezes superior à das restantes regiões do planeta.
O Brasil tem 17% da superfície da área tropical e é o país mais rico em diversidade: nele vivem 3,6 mil espécies de peixes de água doce, que representam 24% do total de peixes de água doce do planeta, e 1,9 mil espécies de aves, que correspondem a 17% de todas as aves do planeta. O Brasil tem 12% das plantas,, 11% das formigas, 13% dos anfíbios e 12% dos mamíferos. Os biomas tropicais brasileiros guardam 12% da água doce superficial da Terra e fazem do país o maior contribuinte para a estabilidade climática global. A Amazónia retém carbono numa proporção equivalente a 10 anos de emissões geradas pela queima de combustíveis fósseis.
Estes indicadores resultam da investigação desenvolvida ao longo de duas décadas pelas Universidades de Lavras (Brasil) e Lancaster (Reino Unido) e colocam em evidência a relevância global das regiões tropicais para a estabilidade climática, a biodiversidade e a sustentabilidade.

tropical

Os indicadores clássicos com que se medem as economias e os recursos são incompletos e mostram uma versão distorcida da realidade. Na hora de preservar os recursos das zonas tropicais, os países e povos dessas regiões são praticamente abandonados a si próprios e à ação predatória dos interesses económicos. O próprio conceito de "valorização" dos recursos é ambíguo. A exploração pura e dura sem preocupações reais de sustentabilidade (extrair o máximo valor o mais rapidamente possível) é uma falsa valorização. O valor dos recursos nativos dos trópicos é bem superior porque excede largamente o valor comercial imediato. Cada árvore não vale apenas a madeira que fornece, devia valer também o carbono que retém e todo o benefício pode aportar para o futuro. O problema é que ninguém está disposto a pagar o real valor desses recursos. É bem mais fácil enriquecer à custa do futuro.
Os trópicos, e o Brasil em especial, têm a maior quota parte da biodiversidade, mas têm também a maior quota parte no número de espécies ameaçadas. A recolha de dados e a investigação continuam a deixar avisos. Abundam os diagnósticos e as derivas filosóficas e ideológicas contra o "antropocentrismo" e a favor da prevalência da natureza sobre o ser humano. Só que a solução terá que humana, ou não será solução. Faltam os consensos e as medidas que travem as tendências predatórias e substituam os modelos de "desenvolvimento" predatórios e não sustentáveis. Se os biomas tropicais contribuem para a estabilidade climática global, então os países dessas regiões devem ser remunerados por esse serviço que prestam aos demais. Há que elaborar a forma e a métrica dessa remuneração.

Carlos da Silva Campos

Fontes:
Ronaldo Ribeiro, A Solução Hiperdiversa,;  Ronaldo Ribeiro, Alan Azevedo e Letícia Klein, Dados Inéditos sobre a Biodiversidade Brasileira; Jos Barlow et alia, The Future of Hyperdiverse Tropical Ecosystems, in Nature, 25/7/2018

O lugar da reciclagem

17 - Janeiro - 2021

A fábrica de reciclagem mecânica de plásticos inaugurada em Lahnstein, Alemanha, vem confirmar a inclusão do negócio da reciclagem na lógica da economia circular. A reciclagem deixou de ser um negócio marginal para se tornar num negócio estratégico e conquistar o interesse das multinacionais e dos investidores. Mas o nó górdio da economia circular continua a estar na recolha…

(Foto: TOMRA)

A fábrica de Lahnstein resulta de uma joint venture entre a Borealis, um dos maiores produtores de poliolefinas (polietileno e polipropileno), a Tomra, especialista em tecnologia de triagem (máquinas de recolha automáticas, sistemas de separação) e a Zimmerman, operador de recolha de resíduos. Esta conjugação seria impensável há algumas décadas, quando a reciclagem de plásticos era um negócio marginal e discreto. Quando as preocupações ambientais ligadas à produção de resíduos se fizeram sentir, os produtores de matérias-primas olharam para as indústrias de reciclagem com outros olhos: a maior parte das alegações ambientalistas referia os plásticos como poluentes e não recicláveis e os produtores precisavam de tornar a reciclagem conhecida para que os plásticos ficassem melhor na fotografia. Da fase marginal, passou-se à fase paternalista. Criaram-se circuitos e sistemas para estender a recolha aos plásticos de uso doméstico, multiplicando as quantidades. As indústrias de reciclagem absorveram essas quantidades e quase sempre tiveram capacidade de processamento acima dos resultados da recolha. Em menos de 20 anos, as taxas de reciclagem de 4% ou 5% saltaram para os dois dígitos, e se não subiram mais, não foi por falta de recicladores. Nessa altura os produtores de matérias-primas voltaram a mudar o seu olhar sobre a atividade de reciclagem. Os reciclados (resultantes dos processos de reciclagem) já não eram “aproveitamentos” pouco expressivos em quantidade e limitados a aplicações menos “nobres”. Passaram a ser matérias-primas secundárias, com qualidade comparável à das matérias-primas primárias e com uma quota de mercado desafiadora. Os produtores de matérias plásticas, quase todos eles de dimensão multinacional, constataram que estavam a perder mercado para uma indústria recicladora emergente, com tecnologia cada vez mais apurada, e com capacidade para concorrer, à escala local, regional ou global. O interesse das “grandes petroquímicas” pela reciclagem evoluiu do patrocínio e defesa da imagem para o investimento e defesa das quotas de mercado.  O investimento revestiu modalidades várias, desde a aquisição de recicladores até ao investimento de raiz em novas unidades. A jont venture de Lahnstein é mais um dos múltiplos episódios de investimento dos produtores de plásticos na reciclagem.

Existe nesta evolução a ironia feliz das coisas simples. Quando os produtores de matérias-primas investem “a sério” na reciclagem, o objetivo prioritário já não é ter um cartão de visita verde – é produzir plásticos a partir de plásticos (em vez de derivados do petróleo ou do gás de xisto). Ironicamente, estes investimentos aportam um desempenho ambiental mais significativo que os apoios pontuais e os patrocínios de há 20 ou 30 anos. A atividade industrial de reciclagem é hoje uma fonte alternativa de matérias-primas e o facto de reduzir a dependência da “extração” de recursos naturais (petróleo) faz dela um exemplo de economia circular. Lançar plásticos em aterros é como queimar notas de banco para aquecer as mãos.

Proximidade

A emergência das indústrias de reciclagem pode ter outro efeito estrutural no negócio das matérias-primas. Ao longo dos mais recentes 30 ou 40 anos, assistiu-se à “consolidação” dos produtores de plásticos: aquisições sucessivas, trocas de capacidades e outras operações do género reduziram o número de produtores de cada espécie de polímero e provocaram uma deslocação/concentração da produção para as regiões do petróleo, maxime o médio oriente. Com o aumento do peso dos reciclados no mercado das matérias-plásticas, o pêndulo inicia o movimento no sentido contrário. A mesma lógica (produzir junto à fonte de matéria-prima) faz com que a reciclagem tenha que ocorrer o mais perto possível das fontes de resíduos. A menos que a Europa se deixe transformar numa pista de camiões de transporte de resíduos, a reciclagem deverá continuar a ser assegurada por indústrias de proximidade. É por isso que a experiência dos recicladores da “velha guarda” pode continuar a ter um papel essencial na consolidação da economia circular: eles estão calejados nos mercados de proximidade, na captação de matérias-primas (resíduos), na venda de reciclados, nas variantes tecnológicas e até nos investimentos ambientais (sobretudo no tratamento de águas residuais). Todavia, a ideia de que as indústrias de reciclagem continuarão nas mãos dos industriais da “velha guarda” está longe de ser um dado adquirido.

Apesar de terem demonstrado uma resiliência superior à média, as indústrias de reciclagem mecânica não são imortais nem imunes à cegueira que tem caraterizado os legisladores e reguladores. A experiência europeia dos anos mais recentes (pelo menos a década mais recente) permite afirmar que a economia circular não se faz à custa da subsidiação de uma ou outra indústria, mas de estratégias integradas e coerentes que promovam o potencial que existe na recolha de resíduos e que não dificultem o acesso das indústrias recicladoras às matérias-primas de que dependem.  Portugal, que nunca subsidiou a reciclagem, passou diretamente à “exportação” para a Ásia. Mesmo os países europeus mais lestos a adotar medidas ambientais cometeram erros de palmatória. A Alemanha, por exemplo, investiu milhões a subsidiar unidades de reciclagem e depois deixou-as falir para vender os resíduos aos traders asiáticos. Será a joint venture de Lahnstein um volte-face ou apenas mais uma “experiência-piloto” para demonstrar o que já se sabe?

Nó górdio

A economia circular é uma questão de sustentabilidade e sobrevivência. A sua concretização está dependente da retoma do aumento das quantidades recolhidas, em vez da estagnação das recolhas seletivas, por falta de evolução dos sistemas. Os sistemas de ecovalores (p. ex. “green dot”), que impulsionaram as recolhas seletivas, estão exauridos e demasiado emaranhados nas suas teias regulatórias para conseguirem evoluir. O pagamento do ecovalor é feito “à cabeça” (na compra do produto embalado), acrescido de IVA. Depois, o cidadão constata que quem separa paga o mesmo que quem não separa. E constata também que a recolha que marca passo, ano após ano. É natural que se sinta mal servido.

Entretanto, os aterros continuam a encher-se de materiais com elevado potencial de reciclagem. O nó górdio da economia circular não está na reciclagem – está na recolha. Neste contexto, que fazem os legisladores e reguladores?

Induzem a evolução dos sistemas de recolha? Nem por isso. Os sistemas de depósito e de reverse vending induziram altas taxas de recolha de alguns resíduos (garrafas, latas) em numerosos países, mas a sua generalização continua por acontecer. A “experiência” portuguesa neste capítulo é um exercício de “faz de conta”. Os sistemas de PAYT (pay as you throw), por seu turno, poderiam premiar os cidadãos, fazendo-os pagar apenas em função do que não separam para reciclagem. Mas estes sistemas continuam a ser apresentados, ano após ano, em seminários e jornadas sobre resíduos, sem concretização prática significativa. Por outras palavras, ainda não passaram da fase da miragem. A Europa parou no tempo. Em matéria de sistemas de recolha, há mais de vinte anos que não se inova.

Em vez de medidas consistentes com a economia circular, os legisladores têm recuperado as velhas ideias do passado: taxas, tributar, proibir. É hoje quase impossível abrir um jornal sem reler mais uma alegação contra os plásticos. O problema dos sacos de plástico leves podia ter sido resolvido com mais espessura (para reduzir o uso excessivo e a quantidade de material lançada no mercado), mais recolha e mais reciclagem (que já era de cerca de 50%). Optou-se por tributar “à bruta”, o que causou o desaparecimento desses sacos (zero de receitas de tributação), o aumento da quantidade de plásticos lançada no mercado e a substituição por “alternativas” de maior impacte ambiental.

A restrição dos plásticos descartáveis é outro exemplo da miopia legislativa. Num sistema de economia circular, pouco interessa se os materiais ou produtos são descartados ou não – o que interessa é que, em vez de irem para os aterros, sejam devolvidos ao mercado sob  a forma de novos materiais ou produtos. As medidas legislativas podem e devem seguir nesse sentido. Por exemplo, induzindo soluções mais fáceis de recolher e de reciclar, tais como embalagens fabricadas mono-material ou com materiais compatíveis. Em vez disso, alguns governos (o português incluído) preferiu a proibição – embora  a prazo – de alguns descartáveis. É preciso alimentar a ilusão de que algo muda para que tudo continue na mesma.

As experiências recentes alimentam sérias dúvidas sobre a vontade e a competência para induzir a economia circular por via regulatória. É um problema muito sério porque o mercado, por si só, também é incapaz de induzir a economia circular. Se fábricas como a de Lahnstein não forem aprovisionadas com resíduos em quantidade, qualidade e preço sustentáveis, corre o risco de não passar de mais uma experiência piloto interessante.

Carlos da Silva Campos

Fontes de informação sobre a fábrica de Lahnstein: Borealis, Tomra

Temos economia, mas não é circular

31 - Janeiro - 2018

 

Embora incida sobre a realidade do Reino Unido, o filme espelha o que está a acontecer no mercado global dos resíduos de plástico. Atraídos pela procura chinesa, os "gestores" e os "operadores" apostaram na exportação. Enquanto os legisladores de Bruxelas e Estrasburgo preparavam programas e regulamentos sobre "economia circular", centenas de fábricas de reciclagem de plástico fecharam. As "ecotaxas", os "valores ponto verde" – o dinheiro dos cidadãos – subsidiaram a exportação para a Ásia. As estatísticas, que davam as quantidades exportadas como recicladas, mentiam. Na Ásia, a maior parte era (e ainda é) refugo devolvido ao ambiente e a parte reciclada era (e ainda é) processada em condições infra-humanas e infra-ambientais. Esta realidade é conhecida pelo menos há uma década, mas nada mudou nas políticas europeias.
A grande mudança veio da China. Continua a precisar de grandes quantidades de plástico (resíduos para reciclar) para alimentar a sua indústria, mas estava farta de ser a maior lixeira do mundo. Restringiu e proibiu a importação, exigindo resíduos processados, limpos, apostando na recuperação dos seus próprios resíduos e também na melhoria das condições e capacidades da sua indústria de reciclagem. O resultado está à vista no mercado global e sobretudo no europeu. Desapareceu a procura "insaciável" de resíduos de plástico. Os "operadores" e os "gestores" têm cada vez mais dificuldade em vender as quantidades recolhidas. Os "sistemas integrados" foram configurados para trabalhar com preços elevados, mais ou menos garantidos, sempre com a procura acima da oferta. No novo cenário, quase tudo se inverteu. A procura de resíduos diminuiu e os poucos recicladores que restam têm alternativas melhores e mais acessíveis de aprovisionamento.  Com a China a restringir as importações, os grandes dealers procuram destinos alternativos na Ásia. Ou seja, comete-se o mesmo erro…  Mas não há outra China.
Se os operadores não conseguem vender os resíduos aos preços a que estavam habituados, o financiamento da operação tenderá a sobrecarregar os cidadãos…
Cometeram-se erros neste itinerário. Aumentou o número de "operadores", de "gestores", numa palavra, de intermediários mas perdeu-se o conhecimento e o controlo do destino final. Deixou de se verificar se os resíduos eram mesmo reciclados, isto é, convertidos em nova matéria prima. Bastava pagar a quem os exportasse, comprando assim a estatística para fazer o brilharete do cumprimento das metas…
Em tempos, foi apresentada uma proposta essencial e elementar: os incentivos económicos à recolha (o dinheiro das ecotaxas e dos "pontos verdes") só deviam ser pagos mediante "prova de reciclagem" e as estatísticas da reciclagem deveriam incluir apenas as quantidades comprovadamente recicladas (e não meramente vendidas ou expedidas).
Os responsáveis pela legislação – incluindo os que estão ainda no exercício do cargo – tiveram esta proposta à sua frente e rejeitaram-na. Preferiram manter o sistema que movimenta o dinheiro dos cidadãos entre gestores e operadores independentemente de os resíduos serem reciclados ou não. Preferiram manter o sistema em que os cidadãos que separam são tratados do mesmo modo que os cidadãos que não separam. O sistema que dá mais importância aos "operadores" e "dealers" que aos recicladores. O sistema que não incentiva a origem (a separação pelo consumidor) nem o destino final (a reciclagem).
Temos economia, mas não é circular.

Mudança de paradigma na política de resíduos

30 - Maio - 2017

Com a aplicação do princípio da responsabilidade alargada do produtor, os agentes económicos foram chamados a contribuir financeiramente para operações destinadas a tornar possível a reciclagem. No caso das embalagens, criaram-se “ecovalores” em função do peso de cada embalagem introduzida no mercado, para financiar os custos acrescidos da recolha seletiva e triagem de resíduos de embalagens. Para receberem esse financiamento, os municípios, ou as empresas concessionárias, tinham de desenvolver circuitos de recolha seletiva e instalar estações de triagem. Durante mais de 20 anos, o sistema funcionou e impulsionou a reciclagem de resíduos de embalagens. Recentemente, o paradigma mudou.

O dinheiro dos “ecovalores” (incluído no preço dos produtos embalados e, por conseguinte, pago pelos cidadãos) passou a ser utilizado também para financiar a recolha indiferenciada. As empresas concessionárias (entretanto privatizadas) deixaram de estar obrigadas a ter recolha seletiva e triagem para poderem ter acesso às contrapartidas do chamado “sistema integrado”. Ocorreram mesmo casos de encerramento da estação de triagem e de mistura de resíduos quer os cidadãos tinham separado (recolha seletiva), com os resíduos da recolha indiferenciada. O tema foi recentemente abordado na RTP1 (programa “Sexta às 9”) e na RTP3 (programa “Sexta às 11”).

"Não há razão nenhuma para haver retrocesso. Eu só espero é que os portugueses se sintam motivados, do ponto de vista ambiental, a terem comportamentos cada vez mais qualificados, usarem bem as infraestruturas que têm à sua disposição, e tudo o resto funcionará tranquilamente e eu espero até que bastante melhor" – diz o Secretário de Estado do Ambiente nesta peça jornalística. Mas terá razão para esse otimismo?

A verdade é que os ecovalores já aumentaram cerca de 30%, em média. Os cidadãos passam a pagar duas vezes (nas taxas de resíduos sólidos e no ecovalor) pelo mesmo serviço (recolha indiferenciada). E vão pagar para um fluxo de resíduos com menor interesse (em quantidade e qualidade) para a reciclagem. Os municípios, o país e os cidadãos não terão qualquer benefício desse aumento dos ecovalores. Beneficiadas serão apenas as empresas privadas concessionárias dos sistemas de resíduos (nas quais o Secretário de Estado do Ambiente fez a sua carreira). Os cidadãos vão constatar que quando mais separam mais pagam e que, apesar de pagaram mais, a reciclagem não está a aumentar! Vão pagar para um fluxo indiferenciado no qual os resíduos de embalagens nem deveriam estar.

Existem boas razões para pensar que se assiste a um retrocesso da política de resíduos. O princípio da responsabilidade acrescida do produtor está a ser pervertido para criar uma monstruosidade para-fiscal que só vai retardar o caminho para as metas de reciclagem. A alternativa seria voltar a por este sistema dos ecovalores no trilho certo, o trilho da recolha seletiva, da separação dos recicláveis. E modernizando a recolha seletiva com soluções avançadas que aumentem a quantidade dos resíduos (recolha porta-a-porta), que diminuam os custos (evitar a duplicação de meios), que melhorem a qualidade dos materiais e recompensem os cidadãos cumpridores (recolha automática de embalagens com depósito, sistemas “pay as you throw”, etc.).

Incinerar ou exportar não é reciclar

9 - Maio - 2015

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A reciclagem não pode confundir-se com a incineração, nem com a exportação de resíduos recicláveis para a China. O tema voltou a estar em destaque durante a conferência "Identiplast" recentemente realizada em Roma.
Helmut Maurer, da DG Ambiente da Comissão Europeia disse que "A Tetra Pak está a mentir quando diz que recicla 100% dos seus resíduos de embalagens. O modo como estamos a lidar com a reciclagem está falhar e estamos a mentir aos consumidores. Não estamos a reciclar, estamos a incinerar".
Por seu turno, Michael Scriba, CEO da mtm plastics GmbH, empresa alemã de reciclagem de plásticos, afirmou, a propósito da reciclagem de plásticos, que "a reciclagem não aumentou, o que aumentou foi a exportação das exportações para a China". Scriba considera que é um erro exportar para a China 50% dos resíduos plásticos tendo em conta que a Europa é pobre em matérias-primas e precisa de ter mais eficiência de recursos. Manifestou-se a favor da imposição de taxas sobre a incineração e a deposição em aterro, a par com metas de reciclagem mais ambiciosas.

Segundo Harald Pilz, da Denkstatt (Áustria), a incineração será uma boa opção para os plásticos depois de se ter atingido o limite de reciclagem eco-eficiente, "algures entre 36% e 53% porque a partir deste limitem, a reciclagem terá baixa qualidade sem benefícios ambientais ou será menos eficiente devido a custos mais elevados".

Fonte de Informação: Marianne Geater, in European Environment & Packaging Law

Centros de Dados mais ecológicos

2 - Maio - 2015

As tecnologias da informação e da comunicação (TIC) consomem cerca de 10% da electricidade a nível global. Com o aumento das aplicações baseadas na internet e na "cloud", esta percentagem tende a aumentar. Um único Centro de Dados pode consumir mais eletricidade que uma típica cidade de média dimensão. Grande parte desta energia nunca chega a ser utilizada, sendo simplesmente libertada como calor para a atmosfera, contribuindo assim para o aquecimento global e local. Existem, actualmente, três milhões de Centros de Dados a nível mundial. As emissões combinadas de dióxido de carbono destes Centros de Dados podem ultrapassar as emissões de toda a indústria da aviação em apenas cinco anos.

Para contrariar esta previsão, os centros de dados podem ser projectados e construídos com tecnologia mais eficiente e amiga do ambiente. O EcoDataCenter em construção em Falun, Suécia, terá um desempenho avançado em termos de segurança, eficiência energética e redução de impacto ambiental. Está a ser criado pela companhia de energia Falu Energi & Vatten, com a colaboração da EcoDC AB, e tecnologia da Schneider Electric. O primeiro dos três edifícios estará completo no primeiro trimestre de 2016.

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O EcoDataCenter em Falun estará conectado ao sistema de energia local, galardoado em 2013, em Nova Iorque, com o Global District Energy Climate Award 2013 por ser um dos melhores do Mundo. O calor excedentário dos servidores e equipamento de TI irá aquecer os edifícios em Falun através do sistema de aquecimento do distrito. Durante o verão, a energia excedente da central de produção de energia local servirá para alimentar as máquinas que arrefecerão o Centro de Dados. A colaboração entre o Centro de Dados e o sistema de aquecimento do distrito irá garantir que as emissões serão reduzidas, de tal forma que o EcoDataCenter terá uma pegada negativa de dióxido de carbono até um ano. A eletricidade que alimenta o Centro de Dados provém, apenas, de fontes de energia renováveis, tais como energia solar, eólica e hídrica, bem como de biocombustíveis secundários.

O EcoDataCenter foi também projetado de forma a alcançar o nível mais elevado de disponibilidade, de acordo com o Uptime Institute Tier IV™, algo que apenas mais 12 Centros de Dados no Mundo conseguiram atingir, até à data. Terá, igualmente, um nível de desempenho excecionalmente elevado, com uma disponibilidade garantida de 100%.


EcoDataCenter
– Três edifícios, no total com 23 250m2;
– 8 megawatts;
– Disponibilidade: 100%;
– Fontes de energia: Solar, eólica, hídrica e biocombustíveis secundários;
– Classificação de segurança: Tier IV™ (a mais alta possível). O Centro de Dados estará protegido por robustas paredes de cimento e segurança avançada, bem como sistemas de controlo e vigilância;
– PUE (Power Usage Effectiveness): Menos de 1.15 (Tier IV™ design);
– Design amigo do ambiente com infraestruturas certificadas, de acordo com o LEED Platinum;
– Plantas Sedum (plantas a florir) nos telhados, refrigerando-os durante o verão;
– Clima: Temperatura anual média de 5ºC. Número médio de dias por ano com temperaturas máximas> 25ºC em 22 dias;
– Acessos: 2 km para a auto-estrada, 25 km até ao aeroporto, 2 h de comboio até Estocolmo;

 

Fonte de informação: EcoDC AB and Falu Energi & Vatten AB